A pedido de uma família leitora, muito estimada por mim, transcrevo uma série de discursos de Pio XII sobre a questão: ciência e religião. Espero que seja útil aos demais leitores, aliás, é útil sim, um assunto muito interessante e propício para os tempos atuais. Assim que for possível transcreverei mais sobre o assunto.
Indigna escrava do Crucificado e da SS. Virgem,
Letícia de Paula
Papa Pio XII
O enigma do criado fatigou desde séculos a admiração e a inteligência de todas as gentes; de suas soluções multiformes fez ressoar os pórticos e as escolas da Academia, do Peripatético e da Stoa; de seus volumes encheu as bibliotecas antigas e modernas; com suas disputas sobre o caminho para decifrá-lo suscitou lutas entre os sábios pesquisadores da natureza, da matéria e do espírito. Estas fadigas, estas lições, estes volumes, estas lutas, nada são senão pesquisas da verdade escondida nas faces do enigma. Que mais deseja a alma humana senão a verdade?
Sim, as almas anseiam e procuram a verdade, que palpita no invólucro daquilo que vemos, escutamos, cheiramos, degustamos, tocamos e sentimos de mil formas, e seguimos com o nosso pensamento na vertigem dos pesos, dos números, das medidas, dos movimentos visíveis e invisíveis, onde se agita, se transforma, se mostra e se esconde para aparecer mais vizinho ou mais distante; onde desafia o nosso acume, as nossas máquinas, as nossas experiências, e muitas vezes nos ameaça com o terror de uma força mais potente do que os nossos instrumentos e do que os nossos inventos, maravilhosos portentos da mão e da industriosa arte nossa. Tal é o vigor, o atrativo, a beleza e a impalpável vida da verdade, que se desvencilha do aspecto e da pesquisa da imensa realidade que nos circunda.
Vozes e palavras, que a realidade das coisas manda à nossa mente através dos admiráveis sentidos de nossa natureza plasmada de carne e de espírito, é a verdade por nós procurada pelas desmedidas vias do universo. Como nós não criamos a natureza, assim não criamos a verdade: as nossas dúvidas, as opiniões nossas, as nossas negações ou o nosso descaso, não a mudam. Nós não somos a medida da verdade do mundo, nem de nós mesmos, nem do alevantado fim a que fomos destinados. A nossa arte, sagaz medida da verdade de nossos arneses e instrumentos, de nossos aparelhos e inventos, transforma e encadeia e doma a matéria, que a natureza nos oferece, mas não a cria; e deve permanecer satisfeita por seguir a natureza, como o discípulo faz a respeito do mestre, do qual imita a obra. Quando o nosso intelecto não se conforma com a realidade das coisas ou é surdo à voz da natureza, dissipa-se na ilusão dos sonhos, e corre atrás de vaidades que parecem uma pessoa.
Mas não somente a arte nossa depende de Deus, mas também a verdade do nosso intelecto, porque na escala da verdade conhecida ela se encontra, por assim dizer, no terceiro degrau da descida: sob a natureza e sob Deus. Entre Deus e nós está a natureza. Inseparável é a verdade da natureza diante da infalível arte da mente criadora que a sustenta no ser e no operar e assim mede a verdade na realidade das coisas.
E acidental à natureza e às coisas é a relação de verdade, de que as reveste, como efeito de suas contemplações e investigações, o nosso intelecto débil, que não possui, como alguns pensaram, idéias inatas desde o nascimento; mas por meio dos sentidos inicia o conhecimento das coisas perceptíveis em sua acidentalidade exterior e qualidade que são por si mesmas sensíveis; de modo que pode apenas por meio destes fenômenos externos chegar ao interno conhecimento das coisas, também daquelas cuja acidentalidade é perfeitamente percebida pelos sentidos. E por isto o engenho humano, não ofuscado pelos preconceitos e por erros, compreende que, como a natureza é filha de Deus, medida sobre a verdade da mente divina, assim, medindo ela mesma o conhecimento da nossa mente que apreende por meio dos sentidos, faz de modo que a verdade de nossa ciência seja filha dela e portanto, de algum modo, "neta" de Deus
O homem pela escada do universo sobe até Deus: o astrônomo chegando ao céu, escabelo do trono de Deus, não pode permanecer incrédulo à voz do firmamento; além dos sóis e das nebulosas astrais atravessa o pensamento seguido pelo amor e pela adoração, e veleja para um Sol que ilumina e aquece não o barro do homem, mas sim o espírito que o anima.
Eis a alegria de conhecer e de saber, mesmo pouco, do desmesurado pélago de verdade que nos circunda; estamos vagando no barquinho de nossa vida, com a bússola de nossa inteligência.
As descobertas dos predecessores se sobrepõem, ampliando e corrigindo, os novos frutos das invenções dos continuadores, prodígios de ciência física, matemática e industrial, que tornam atônita e altaneira a idade presente, vaticinadora e ávida de mais portentosas maravilhas.
Esta maravilhosa elevação, que faz o homem no céu sobre as cidades e as planuras e os montes do globo, parece-nos que Deus tenha concedido ao engenho humano em nosso século para recordar-lhe uma vez mais como da "Paiuola che ci fa tanto feroci", da eirazinha que tão ferozes nos faz, o homem pode subir até Deus, pela mesma via pela qual descem as coisas; assim que, enquanto todas as perfeições das coisas descem ordenadamente de Deus, sumo vértice dos seres, o homem, pelo contrário, começando das inferiores e subindo de grau em grau, pode adiantar-se no conhecimento de Deus, primeira causa, sempre mais nobre do que todo seu efeito. A verdade, que a vós dizem as coisas inferiores em sua variedade e diversidade, não é senão aquela que "odium parit", que gera o ódio, mas se aquela verdade que se eleva acima das divisões e dos dissídios das almas, que irmana as capacidades e os espíritos no amor da verdade, porque uma verdade ama outra, e como irmãs, filhas de uma mesma mãe, a sabedoria divina, osculam-se diante da presença de Deus. E vós, perspicazes investigadores da natureza, o Nosso antecessor, de veneranda memória, previu os grandes amigos da verdade, em cujo amor vossa ciência os irmana e faz de vós, em meio às lutas que ensanguentam o mundo, um exemplo insigne daquela união de pacíficos intentos, que não perturba as fronteiras do mundo, dos rios, dos mares e dos oceanos.
Amiga da verdade, a Igreja admira e ama o progresso do saber ao lado daquele das artes e de todas as coisas que vedes.
Não é porventura a Igreja mesma o progresso divino no mundo e Mãe do mais alevantado progresso intelectual e moral da humanidade e do viver civil dos povos? Ela avança nos séculos, mestra de verdade e de virtude, lutando contra os erros, não contra os que erram, não destruindo mas edificando, plantando rosas e lírios sem desarraigar oliveiras e louros. Guarda e, muitas vezes, santifica os monumentos e os templos da grandeza pagã de Roma e da Grécia. Se nos seus museus não tem mais cultores de Marte e Minerva, nos seus monastérios e em suas bibliotecas falam ainda Homero e Virgílio, Demóstenes e Túlio; nem desdenha que ao lado da Águia de Hipona e de Aquino estejam Platão e Aristóteles. Toda ciência é por ela convidada, nas universidades que fundou; chama ao lado de si a Astronomia e a Matemática para corrigir a antiga medida do tempo; chama toda arte, assinalada pelo esplendor do verdadeiro e para emularem em honra de Cristo, chama as basílicas dos Césares e vai superá-las, com cúpulas vertiginosas, com ornamentos, com imagens, com simulacros que eternizam o nome de quem os realizou. Como toda arte, assim toda ciência serve a Deus porque Deus é "scientiarum dominus", Senhor das ciências, e "docet homicnem scientiam" e ao homem doutrina a ciência. Em sua escola o homem tem dois livros no caderno do Universo a razão humana estuda, em procura da verdade, as coisas boas feitas por Deus, no caderno da Bíblia e do Evangelho o intelecto estuda ao lado da vontade, em procura em procura de uma verdade superior à razão, sublime como o íntimo mistério de Deus, só por Ele conhecido. Na escola de Deus encontram-se Filosofia e Teologia, palavra divina e Paleontologia, a visão da luz, das trevas e a Astronomia, a Terra em eterno fixa e o seu giro ao redor do Sol, o olhar de Deus e o olhar do homem. A bondade de Deus, qual mãe, como que balbucia a linguagem humana para fazer reter ao homem a excelsa verdade que lhe manifesta em uma escola de verdade amiga que o exalta e o faz discípulo de Deus, no estudo da natureza e da fé. Tal doutrina é também subministrada pela Igreja em suas escolas e em seu magistério. Não esta porventura a razão a serviço da fé, ainda mais que lhe dá aquele "rationabile obsequium", obséquio racional, como fundamento e defesa que dimanam da semelhança divina que as embeleza? E a fé, por sua vez, não exalta a razão e a natureza, convidando a bendizer ao Senhor todas as múltiplas multidões de criaturas do universo dos céus e da terra, como o cântico dos três moços entre as chamas de Babilônia? E vós vedes a Igreja com o seu ritual benzer as obras da razão e dos gênios humanos, as máquinas livrescas e as bibliotecas, as escolas e os laboratórios, os telégrafos e as estradas de ferro, as fontes elétricas e os aeroplanos, os carros e os navios, as fornalhas e as pontes e tudo quanto a mente e a arte do homem dá ao verdadeiro e são progresso da existência e da vida civil.
Não, o obséquio da razão à fé, não humilha a razão mas honra-a e sublima-a, porque é sua glória do progresso da civilização humana facilitar à fé sua evangélica via no mundo. A fé não é soberba, nem é senhora que tiraniza a razão, nem a contradiz; o selo da verdade não é de modo diverso impresso por Deus na fé e na razão. Mas, longe de dissentir, reciprocamente, como já acenamos, ajudam-se, já que a reta razão demonstra os fundamentos da fé e ao seu lume esclarece os termos, e a fé preserva de erros a razão, livra da queda e ensina com conhecimentos múltiplos.
Aos nobres campeões das disciplinas e das artes humanas a Igreja reconhece a justa liberdade de método e de pesquisa (1).
(1)- Discurso, Inauguração IV ano Acad. Pontif. Ciências, 3 de dezembro, 1939.
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Na escola da natureza, enquanto os céus narram a glória de Deus, são nossas mestras as coisas corpóreas que escondem suas últimas causas mas com suas formas e seus movimentos tornam-nas patentes aos nossos sentidos, quase pressurosas, porque não podem conhecer, ou querer fazer-se conhecer. Falam-nos com suas belezas, com suas organizações, com suas forcas e grandezas desmedidas: Se interrogais os astros, o Sol, a luz, a Terra, o mar, os abismos e os viventes que ali se movem, responder-vos-ão como S. Agostinho de Tagaste: Nós não somos o teu Deus; procura acima de nós: “Non sumus Deus tuus, quaere super nos". Ó homem perdido diante do mundo, não faças, como nota a Sabedoria Divina, um deus das grandezas da natureza, um deus à tua imagem, para ser firmado à parede, com um ferro, porque não caia; não invoques para a saúde de um enfermo, para a vida de um morto, por auxílio, a um ser inútil; para fazer uma viagem, quem não pode caminhar.
Sobre a escola da natureza está a escola da fé, onde se assenta Mestre infalível, o Deus presente e escondido no sacramento do altar, Sabedoria divina encarnada, Verbo do Pai, cuja voz onipotente, como ensina aos antigos e modernos filósofos a origem do universo, partindo do nada, assim manda aos seus apóstolos instruir todas as gentes, em uma ciência mais alta do que a razão, à qual não podem resistir nem contradizer todos os seus adversários, e faz seus discípulos, ao lado dos grandes pontífices romanos e da corte dos padres e doutores, os máximos engenhos da poesia, das ciências e das artes, e, com os príncipes da terra, as almas extasiadas e orantes dos simples fiéis. Naquele ostensório concentra-se toda a fé cristã; ali está mesmo Deus, caminho, verdade e vida, que mostra no céu, com seu braço, doutor que se ergue junto do altar.
E no céu Rafael sublima a própria fé, tentando com o pincel tornar Cristo acima das nuvens da fé, no aberto esplendor da viva luz eterna, sobre o trono do anfiteatro celeste, circundado pela coroa dos santos e dos anjos, junto com o Pai e com o Espírito Santo.
Aquele céu é a excelsa escola divina; aquele trono é a cátedra do Mestre dos mestres "in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditi", no qual estão escondidos todos os tesouros de sabedoria e de ciência. Ele, a sabedoria de todas as coisas e dos mistérios divinos, ele a ciência de todas as coisas criadas, porque é o Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas e nada sem Ele foi feito. Oh! quando nos será dado elevar-nos lá em cima, para sermos discípulos de tão grande Mestre, e contemplá-lo, ouvi-lo; e em sua inefável doutrina, em sua luz divina, com a penetração da alma, conhecer o magistério e a arte, as razões e os efeitos, a matéria, as formações e as ordens de tudo quanto está esparso e compreendido pelo céu e pela terra, tudo que é mundo e natureza; e no complexo das eternas e infinitas idéias do Verbo divino, tudo compreender, no átimo de um olhar, mais do que poderíamos ter realizado em mil anos de estudo, e melhor do que se possuíssemos o acume de todas as mais poderosas inteligências da terra, e mais perfeitamente que se penetrássemos as coisas em si mesmas! "Quando veniam et apparebo ante faciem Dei"?
Lá em cima, aquela sublimíssima e beatificante escola e conhecimento em Deus de todas as ciências humanas e divinas, onde permanece insatisfeita e insaciável ânsia de entender e compreender todos os gêneros e espécies de virtudes e ordens do universo, em que se assoma a perfeição também natural da nossa natureza espiritual; aquele convívio de sabedoria e ciência, inexaurível e perpétuo, onde se perde todo erro da estrada passada; no íntimo afeto do Vigário de Cristo e Pai comum, elevando as nossas faces para o céu, oramos a Deus que a nós todos conceda um dia subir, para recebermos o prêmio imperecível de nossas fadigas daqui da terra (2).
(2)- Discurso, Inauguração IV ano Acad. Pontif. Ciências, 3 de dezembro, 1939.
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Em contraste, soberanamente doloroso, com a luz de multiformes ciências e experiências, que, se bem dirigidas, vêm das universidades e dos ateneus, levantam-se as trevas que premem como uma das causas principais do abismo moral, em que hoje se debate o mundo; queremos aludir ao divórcio que separa um número considerável de homens de cultura respeitável do pensamento cristão. As universidades e os estudos gerais não são nem de hoje nem de ontem: nasceram na Idade Média, do seio da Igreja e sob sua proteção. Também então vós encontraríeis erros, heresias, teorias antissociais todavia naqueles tempos, hoje não raramente denegridos, por obra das universidades formadoras e diretoras das mentes, pairava na atmosfera geral o pensamento das concepções cristãs, e resplandecia aquela fé que não humilha a inteligência e, se a coloca de joelhos, torna-a ainda maior diante da verdade e da veracidade de Deus que falou, e, no acordo admirável da ciência e da razão com a ciência divina, torna angélico um intelecto humano. Mas com o lento trabalho de desagregação espiritual originado pelo humanismo pagão, pelo livre exame, pelo filosofismo pomposo do século XVIII pelo idealismo e pelo positivismo do século XIX, contra os quais grita a realidade do mundo e do homem, que é que então aconteceu? Que vantagens e progressos recolheram a sociedade, a família, a pessoa humana? Dai um olhar à cultura universitária. Quantos campos de estudo e de pesquisas científicas desenvolveram-se e se dilataram fora de todo contato com o pensamento católico, sem ter em conta alguma o grande fato da revelação sobrenatural, alargando-se em um âmbito, se não sempre antirreligioso ao menos descuidando da religião? Donde um funesto descristianizar-se do espírito em tantos dos "maiores", chamados a conduzir seus irmãos, a iluminar os demais, a pensar por eles, e guiá-los na vida, com aqueles amargos frutos que o presente nos faz saborear.
Deste divórcio e antagonismo entre a ciência e a religião, a verdade não pode ser obnubilada nem rebaixada de seu trono de luz, porque ela mesma é luz e trono, vestígio e fulgor da luz inacessível, na qual Deus tem o seu trono, e do qual descem para os homens, como dois regatos de uma única fonte, as verdades da razão e as verdades da fé, nunca entre elas em contraste, mas irmãs de igual beleza. Umas e outras não desdenham, antes amam demonstrar-se amigas na mente humana, ávidas de todos os lampejos da verdade oculta ou clara: donde grandes e sublimes gênios dos séculos cristãos souberam fazer as suas razões ancilas da fé e inclinaram a fronte à "desonra do Gólgota."(3)
(3)- Discurso, Juventude Universitária, 20 de abril, 1941.
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A Igreja jamais é inimiga das ciências e das artes, e preocupa-se em ter centros próprios de alta cultura, onde livre e plenamente possa exercitar a sua ação; mas não está por isto propensa a aceitar que a verdade, cujo depósito guarda, esteja ausente e sem influxo e luz em outros centros, cujas ordens prescindem mais ou menos do olhar católico.(4)
(4)- Discurso, Congressista Sociedade Italiana para o Progresso das Ciências, 20 de outubro, 1942.
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De fato, a ciência verdadeira, contrariamente a arriscadas afirmações do passado, quanto mais avança tanto mais descobre Deus, como se Ele estivesse vigiando à espera, por trás de cada porta que a ciência abre. Antes, queremos dizer que, deste progressivo descobrimento de Deus, operado nos incrementos do saber, não somente se beneficia o cientista, quando pensa como filósofo - e como poderia abster-se disto? - mas também tiram proveito todos aqueles que participam dos novos achados ou os tomam para objeto das suas considerações; e, de modo especial, tiram vantagem dele os genuínos filósofos, visto como, tomando das conquistas científicas os impulsos para as suas especulações racionais, daí auferem maior segurança nas suas conclusões, mais claras ilustrações nas possíveis sombras, mais convincentes subsídios para dar às dificuldades e às objeções uma resposta sempre mais satisfatória.
NATUREZA E FUNDAMENTOS DAS PROVAS
DA EXISTÊNCIA DE DEUS
Assim movido e guiado, o intelecto humano vai ao encontro dessa demonstração da existência de Deus que a sabedoria cristã reconhece nos argumentos filosóficos, joeirados nos séculos de gigantes do saber, e que para vós é bem conhecida na apresentação das "cinco vias" que o Angélico Doutor Santo Tomás oferece como itinerário expedito e seguro da mente a Deus. Argumentos filosóficos, dissemos; mas nem por isto apriorísticos, como de tal os acusa um ingeneroso e incoerente positivismo. Eles operam sobre realidades concretas e certificadas pelos sentidos e pela ciência, mesmo se adquirem força probante do vigor da razão natural.
De tal arte, Filosofia e ciências desenvolvem-se com atividades e métodos análogos e conciliáveis, valendo-se de elementos empíricos e racionais em diversa medida e conspirando em harmônica unidade para o descobrimento da verdade.
Mas, se a primitiva experiência dos antigos pôde oferecer à razão argumentos suficientes para a demonstração da existência de Deus, sucede que, com a ampliação e o aprofundamento do campo da própria experiência, mais cintilante e mais nítido refulge agora o vestígio do Eterno no mundo visível. Profícuo se afigura, pois, reexaminar sobre a base das novas descobertas científicas, as clássicas provas do Angélico, especialmente as deduzidas do movimento e da ordem do universo; isto é, investigar se e quanto o conhecimento mais profundo da estrutura do macrocosmo e do microcosmo contribui para reforçar os argumentos filosóficos; e considerar depois, por outra parte, se e até que ponto foram eles, como não raras vezes se afirma, abalados pelo fato de haver a Física moderna formulado novos princípios fundamentais, abolido ou modificado conceitos antigos cujo sentido, no passado, era talvez julgado fixo e definitivo, como, por exemplo, o tempo, o espaço, o movimento, a causalidade, a substância, conceitos sumamente importantes para a questão que ora nos ocupa. Mais do que de uma revisão das provas filosóficas, trata-se, pois, aqui de perscrutar as bases físicas - e, por questão de tempo, deveremos necessariamente restringir-Nos a algumas apenas, - das quais aqueles argumentos derivam. E não há que temer surpresas: a própria ciência não pretende sair desse mundo que, hoje como ontem, se apresenta com aqueles cinco "modos de ser", dos quais toma impulso e nervo a demonstração filosófica da existência de Deus.
DUAS ESSENCIAIS NOTAS CARACTERÍSTICAS DO COSMO
Destes "modos de ser" do mundo que nos circunda, modos notados, com maior ou menor compreensão, mas com igual evidência pelo filósofo e pela inteligência comum, há dois que as ciências modernas maravilhosamente sondaram, averiguaram e aprofundaram além de qualquer expectativa: 1.º) a mutabilidade das coisas, inclusive o seu nascimento e o seu fim; 2.°) a ordem de finalidade que reluz em cada ângulo do cosmo. Notabilíssima é a contribuição assim prestada pelas ciências às duas demonstrações filosóficas que sobre elas versam e que constituem a primeira e a quinta vias. À primeira delas, a física, especialmente, tem conferido uma inesgotável mina de experiências, revelando o fato da mutabilidade em profundos recessos da natureza, onde anteriormente nenhuma mente humana podia sequer suspeitar-lhe a existência e a amplitude, e fornecendo uma multiplicidade, de fatos empíricos que são um valoríssimo subsídio para o raciocínio filosófico. Dizemos subsídio porque, ao contrário, a direção das mesmas transformações embora certificados pela Física moderna, parece-Nos superar o valor de uma simples, confirmação, e como que atinge a estrutura e o grau de um argumento físico em grande parte novo e, para muitas mentes, mais aceitável, persuasivo e agradável.
Com semelhantes riquezas, as ciências, especialmente as astronômicas e biológicas, têm, nos últimos tempos, proporcionado ao argumento da ordem um tal acervo de conhecimentos e uma tal visão, por assim dizer inebriante, da unidade conceitual que anima o cosmo e da finalidade que lhe dirige o caminho, que dessarte antecipa ao homem moderno aquele gáudio que o poeta imaginava no céu, empíreo, quando viu como em Deus "se interna - ligado com amor num só volume - o que pelo universo se folheia".
Todavia, a Providência dispôs que a noção de Deus tão essencial à vida de cada homem, como facilmente se pode inferir de um simples olhar lançado sobre o mundo, que não lhe compreender a voz é estultícia, assim receba confirmação de todo aprofundamento e progresso dos conhecimentos científicos.
Querendo, pois, dar aqui uma rápida amostra do precioso serviço que as ciências modernas prestam a demonstração da existência de Deus restringir-Nos-emos primeiramente ao fato das mutações, realçando-lhe principalmente a amplitude, a vastidão e, por assim dizer, a totalidade que a Física moderna verifica no cosmo inanimado; depois, deter-Nos-emos sobre o significado da direção delas, a qual ficou igualmente certificada. Será como que prestar ouvido a um pequeno concerto do imenso universo que, entretanto tem voz bastante para cantar "a glória d'Aquele que tudo move".
A MUTABILIDADE DO COSMO FATO DA MUTABILIDADE
a) no macrocosmo:
Ao primeiro aspecto, justamente causa admiração o ver como à medida que as ciências têm progredido, o conhecimento do fato da mutabilidade tem ganho sempre maior terreno tanto no macrocosmo como no microcosmo, como que confirmando com novas provas a teoria de Heráclito: "Tudo passa": panta rhei. Como é conhecido, a própria experiência cotidiana mostra uma ingente quantidade de transformações no mundo próximo ou remoto que nos circunda, sobretudo os movimentos locais dos corpos. Mas além destes verdadeiros e próprios movimentos locais, são do mesmo modo facilmente visíveis as multiformes mudanças químico-físicas, por exemplo a mutação do estado físico da água nas suas três fases de vapor, líquido e gelo; os profundos efeitos químicos mediante o uso do fogo, cujo conhecimento remonta a idade pré-histórica; a desagregação das pedras e a corrupção dos corpos vegetais e animais. A tal experiência comum veio juntar-se a ciência natural, que ensinou a compreender estes e outros semelhantes acontecimentos como processos de destruição ou de construção das substâncias corpóreas dos seus elementos químicos, ou seja, nas suas mais pequenas partes, os átomos químicos. Antes, indo mais além ela tornou manifesto como esta mutabilidade químico-física de modo algum se restringe aos corpos terrestres como era a crença dos antigos, mas se estende a todos os corpos do nosso sistema solar e do grande universo que o telescópio, e ainda melhor o espectroscópio, têm mostrado serem formados pelas mesmas espécies de átomos.
b) no microcosmo:
Contra a indiscutível mutabilidade da natureza, mesmo inanimada, ainda se erguia, contudo, o enigma do inexplorado microcosmo. De feito, parecia que, diferentemente do mundo animado, a matéria inorgânica fosse, em certo sentido, imutável. As suas mais pequenas partes, os átomos químicos, podiam, sim, unir-se entre si nos mais diversos modos, porém pareciam gozar do privilégio de uma eterna estabilidade e indestrutibilidade, saindo inalterados de qualquer síntese e análise química. Há cem anos, eles ainda eram julgados simples, indivisíveis e indestrutíveis partículas elementares. O mesmo se pensava das energias e das forças materiais do cosmo, sobretudo com base nas leis fundamentais da conservação da massa e da energia. Alguns naturalistas julgavam-se até autorizados a formular em nome da sua ciência uma fantástica filosofia monista, cuja triste lembrança está ligada, entre outros, ao nome de Ernst Haeckel. Porém mesmo no seu tempo, em fins do século passado, também esta concepção simplista do átomo químico foi transtornada pela ciência moderna. O crescente conhecimento do sistema periódico dos elementos químicos, o descobrimento das irradiações corpusculares dos elementos radioativos, e muitos outros fatos semelhantes, mostram que o microcosmo do átomo químico, com dimensões da ordem do décimo milionésimo de milímetro, é teatro de contínuas mudanças, não menos que o macrocosmo por todos bem conhecido.
c) na esfera eletrônica:
E, primeiramente, o caráter da mutabilidade foi verificado na esfera eletrônica. Da estrutura eletrônica do átomo emanam irradiações de luz e de calor que são absorvidos pelos corpos externos, correspondentemente ao nível de energia da órbita eletrônicas. Nas partes exteriores desta esfera efetua-se também a ionização do átomo e a transformação da energia na síntese e na análise das combinações químicas. Mas então podia-se supor que estas transformações químico-físicas ainda deixassem um refúgio à estabilidade, não atingindo o próprio núcleo do átomo, sede da massa e da carga elétrica positiva, pelas quais é determinado o lugar do átomo químico no sistema natural dos elementos, e onde pareceu encontrar-se como que o tipo do absolutamente estável e invariável.
d) e no núcleo:
Mas já nos albores do novo século, a observação dos processos radioativos, a atribuir-se, em última análise, a uma espontânea desintegração do núcleo, leva a excluir um tal tipo. Verificada, pois, a instabilidade até no mais profundo recesso da natureza conhecida, restava todavia um fato que deixava perplexos os observadores, parecendo que o átomo era inatacável ao menos pelas forças humanas, visto haverem, em princípio, falhado todas as tentativas de lhes acelerar ou deter a natural desagregação radioativa, ou mesmo de desintegrar núcleos não ativos. A primeira e assaz modesta desintegração do núcleo (de azoto) remonta a apenas três decênios; e só há poucos anos, após ingentes esforços, foi possível efetuar em consideráveis quantidades processos de formação e de decomposição de núcleos. Embora este resultado (que, quando serve às obras da paz, certamente se erige em título de louvor para o nosso século) não represente no campo da Física nuclear prática senão um primeiro passo, todavia com ele é assegurada para a nossa consideração uma importante conclusão: os núcleos atômicos são, realmente para muitas ordens de grandeza, mais firmes e mais estáveis do que as composições químicas ordinárias, porém, não obstante isto, são também maximamente sujeitos a semelhantes leis de transformação e, portanto, mutáveis.
Ao mesmo tempo, pôde-se verificar que tais processos têm a maior importância na economia da energia das estrelas fixas. No centro do nosso Sol, por exemplo, opera-se, segundo Bethe, numa temperatura que gira em torno dos vinte milhões de graus, uma reação em cadeia fechada, na qual quatro núcleos de hidrogênio se unem num núcleo de hélio. A energia que assim se libera vem a compensar a perda devida à irradiação do próprio Sol. Mesmo nos modernos laboratórios físicos consegue-se, mediante o bombardeio com partículas dotadas de altíssima energia ou com neurônios, efetuar transformações de núcleos, como se pode ver no exemplo do átomo de urânio. A êste propósito, cumpre outrossim mencionar os efeitos da radiação cósmica, que pode desagregar os átomos mais pesados, desprendendo assim, não raras vezes, enxames inteiros de partículas subatômicas.
Quisemos citar apenas poucos exemplos, capazes entretanto de pôr fora de qualquer dúvida a expressão mutabilidade do mundo inorgânico, grande e pequeno: as múltiplas transformações das formas de energia, especialmente nas decomposições e combinações químicas no macrocosmo; e, não menos, a mutabilidade dos átomos químicos até à partícula subatômica dos seus núcleos.
O eternamente imutável:
O cientista de hoje, mergulhando o olhar no interior da natureza mais profundamente do que o seu predecessor de cem anos atrás, sabe, pois, que a matéria inorgânica, por assim dizer na sua medula mais íntima, está marcada com o cunho da mutabilidade, e que, portanto, o seu ser e o seu subsistir exigem uma realidade inteiramente diversa e, por sua natureza, invariável.
Assim como num quadro em claro-escuro as figuras ressaltam do fundo escuro, só desse modo obtendo o pleno efeito de plástica e de vida, assim também a imagem do eternamente imutável emerge, clara e esplendente, da torrente que, no macro e no microcosmo, arrebata consigo todas as coisas e as transforma numa intrínseca mutabilidade que nunca pára. O cientista que se detém à margem dessa imensa torrente acha repouso naquele grito de verdade com que Deus se definiu a si mesmo: "Eu sou quem sou", e que o apóstolo louva como "Pater luminum, apud quem non est transmutatio neque vicissitudinis obumbratio".
B) A DIREÇÃO DAS TRANSFORMAÇÕES
a) no macrocosmo: a lei da entropia
Mas a ciência moderna não somente alargou e aprofundou os nossos conhecimentos sobre a realidade e a amplitude da mutabilidade do cosmo; ofereceu-nos também preciosas indicações acerca da direção segundo a qual se realizam os processos na natureza. Ao passo que, ainda há cem anos, especialmente depois do descobrimento da lei da constância, se pensava que os processos naturais fossem reversíveis, e, por isto, segundo os princípios da estrita causalidade - ou, melhor, determinação - da natureza, considerava-se possível uma sempre ocorrente renovação e rejuvenescimento do cosmo; com a lei da entropia, descoberta graças a Rudolf Clausius, veio-se a conhecer que os processos naturais espontâneos estão sempre unidos a uma diminuição da energia livre e utilizável; o que, num sistema material fechado, deve conduzir finalmente à cessação dos processos em escala macroscópica. Este destino fatal, que somente hipóteses às vezes sobejamente gratuitas, como a da criação contínua supletiva, se esforçam por poupar ao universo, mas que, ao invés, ressalta da experiência científica, postula eloquentemente a existência de um Ente necessário.
b) no microcosmo:
No microcosmo, esta lei, estática no fundo, não tem aplicação, e, além disto, ao tempo da sua formulação quase nada se conhecia da estrutura e do comportamento do átomo. Todavia, a mais recente investigação sobre o átomo, e outrossim o inesperado desenvolvimento da astrofísica, possibilitaram neste campo surpreendentes descobrimentos. O resultado não pode ser aqui senão brevemente indicado, e é que também ao desenvolvimento atômico e intra-atômico é claramente consignado um sentido de direção.
Para ilustrar este fato, bastará recorrer ao já mencionado exemplo do comportamento das energias solares. A estrutura eletrônica dos átomos químicos na fotosfera do sol desprende, a cada segundo, uma gigantesca quantidade de energia radiante no espaço circunstante, do qual não retorna. A perda é compensada no interior do Sol por meio da formação de hélio de hidrogênio. A energia que com isto se torna livre provém da massa dos núcleos de hidrogênio, a qual, neste processo, em pequena parte (7%) se converte em energia equivalente. O processo de compensação desenvolve-se, pois, a expensas da energia, que originariamente, nos núcleos de hidrogênio, existe como massa. Assim, no curso de bilhões de anos, lenta mas irreparavelmente, tal energia transforma-se em radiações. Coisa semelhante acontece em todos os processos radioativos, quer naturais, quer artificiais. Mesmo aqui, pois, no estrito e próprio microcosmo, verificamos uma lei que indica a direção da evolução, e que é análoga à lei da entropia do macrocosmo. A direção da evolução espontânea é determinada mediante a diminuição da energia utilizável na estrutura e no núcleo do átomo, e até agora não se conhecem processos capazes de compensar ou de anular tal degradação, por meio da formação espontânea de núcleos de alto valor energético.
C) O UNIVERSO E SEUS DESENVOLVIMENTOS
a) no futuro:
Portanto, se o cientista volve o olhar do estado presente do universo para futuro, mesmo remotíssimo, vê-se forçado a verificar, no macrocosmo como no microcosmo, o envelhecimento do mundo. No curso de bilhões de anos, até mesmo as quantidades de núcleos atômicos aparentemente inesgotáveis perdem energia utilizável, e, para falar figuradamente, a matéria aproxima-se de um vulcão extinto e escoriforme. E sucede então o pensar que, se o cosmo presente, hoje tão pulsante de ritmos e de vida, não é suficiente para, como se viu, dar razão de si, tanto menos poderá fazê-lo o cosmo sobre
o qual houver passado, a seu modo, a asa da morte.
b) no passado:
Voltemos agora o olhar para o passado. À medida que se retrocede, a matéria apresenta-se sempre mais rica de energia livre, e teatro de grandes transtornos cósmicos. Assim, tudo parece indicar que o universo material teve, desde tempos finitos, um poderoso início, provido como estava de uma abundância inimaginavelmente grande de reservas energéticas, em virtude das quais, primeiro rapidamente, depois com crescente lentidão, evolveu para o estado presente.
Apresentam-se, pois, espontâneos, à mente, dois quesitos: Está a ciência em condições de dizer quando teve lugar esse poderoso princípio do cosmo? E qual era o estado inicial, primitivo, do universo?
Os mais excelentes peritos da física do átomo, em colaboração com os astrônomos e com os astrofísicos, têm-se esforçado por fazer luz sobre estes dois árduos, mas sobremodo interessantes problemas.
D) O PRINCÍPIO NO TEMPO
Antes de tudo, para citar algumas cifras, que nada pretendem senão exprimir uma ordem de grandeza ao designar o alvorecer do nosso universo isto é, o seu princípio no tempo, a ciência dispõe de várias vias, cada uma bastante independente da outra, mas no entanto convergentes as quais brevemente indicamos:
O distanciamento das nebulosas espirais ou galáxias
O exame de numerosas nebulosas espirais, executado especialmente por Edwin E. Hubble no "Mount Wilson Observatory", levou ao significativo resultado - embora temperado de reservas - de que esses longínquos sistemas de galáxias tendem a distanciar-se uma da outra com tanta velocidade, que o intervalo entre duas dessas nebulosas espirais em cerca de 1.300 milhões de anos se duplica. Se se olha, atrás, o tempo deste processo do "Expanding Universe", resulta que, de um a dez bilhões de anos passados a matéria de todas as nebulosas espirais achava-se comprimida num espaço relativamente restrito quando os processos cósmicos tiveram princípio.
A idade da crosta sólida da terra
Para calcular a idade das substâncias originárias radioativas, datas muito aproximativas se deduzem da transmutação do isótopo do urânio 238 num isótopo de chumbo (RaG), do urânio 235 em tório D (ThD). A massa de hélio que com isto se forma pode servir de controle. Por tal via, resultaria que a idade média dos minerais mais antigos é, no máximo, de 5 bilhões de anos.
A idade dos meteoritos
O método precedente aplicado aos meteoritos, para lhes calcular a idade, deu aproximadamente a mesma cifra de 5 bilhões de anos. Resultado este que adquire especial importância desde quando hoje em dia é geralmente admitida a origem interestelar dos meteoritos.
A estabilidade dos sistemas de estrelas duplas e dos amontoados de estrelas
As oscilações da gravitação dentro destes sistemas, como o atrito das marés, restringem de novo a estabilidade deles para entre os termos de 5 até 10 bilhões de anos. Se estas cifras podem causar estupor, todavia nem mesmo aos mais simples dos crentes trazem elas um conceito novo e diverso do ensinado pelas primeiras palavras do Gênese "In principio", ou seja o início das coisas no tempo. A essas palavras elas dão uma expressão concreta e quase matemática, enquanto um conforto a mais brota delas para aqueles que compartilham com o apóstolo a estima para com essa Escritura, divinamente inspirada a qual é sempre útil "ad docendum, ad arguendum, ad corripiendum, ad erudiendum".
E) O ESTADO E A QUALIDADE DA MATÉRIA ORIGINÁRIA
Com igual empenho e liberdade de indagação e de verificação, além de à questão sobre a idade do cosmo, os doutos aplicaram o seu audaz engenho à outra, já apontada, e certamente mais árdua, que concerne ao estado e à qualidade da matéria primitiva.
Segundo as teorias que se tomam por base, os relativos cálculos diferem não pouco uns dos outros. Contudo, concordam os cientistas em admitir, que, ao lado da massa, também a densidade, a pressão e a temperatura devem ter atingido graus totalmente enormes, como se pode ver no recente trabalho de A. Unsöld, diretor do Observatório de Kiel. Só em tais condições se pode compreender a formação dos núcleos pesados e a sua freqüência relativa no sistema periódico dos elementos.
Por outro lado, com razão a mente ávida de verdade insiste em perguntar como foi que a matéria chegou a um estado tão inverossímil para a nossa comum experiência de hoje, e que foi que a precedeu. Em vão se esperaria uma resposta da ciência natural, a qual antes lealmente declara achar-se em face de um enigma insolúvel. Bem verdade é que demasiado se exigiria da ciência natural como tal; mas certo é também que mais profundamente penetra no problema o espírito humano versado na meditação filosófica.
É inegável que uma mente iluminada e enriquecida pelos modernos conhecimentos científicos, a qual pondere serenamente este problema, é levada a romper o círculo de uma matéria totalmente independente e autóctone, ou porque incriada, ou porque criada por si, e a remontar a um Espírito criador. Com o mesmo olhar límpido e crítico com que examina e julga os fatos, entrevê ela e reconhece aí a obra da onipotência criadora, cuja virtude, agitada pelo potente "fiat" pronunciado há bilhões de anos pelo Espírito criador, se desenvolveu no universo, chamando à existência, com um gesto de amor generoso, a matéria exuberante de energia. Parece, realmente, que a ciência hodierna, saltando de um pulo milhões de séculos, conseguiu fazer-se testemunha desse primordial "Fiat lux", quando do nada prorrompeu, com a matéria, um mar de luz e de radiações, enquanto as partículas dos elementos químicos se cindiram e se reuniram em milhões de galáxias.
Bem verdade é que, da criação no tempo, os fatos até aqui averiguados não são argumento de prova absoluta, como são, ao contrário, os atingidos pela metafísica e pela revelação, naquilo que concerne à simples criação, e pela revelação se se trata de criação no tempo. Os fatos pertinentes às ciências naturais, a que Nós já nos referimos, aguardam ainda maiores indagações e confirmações, e as teorias fundadas neles precisam de novos desenvolvimentos e provas, para oferecerem uma base segura a uma argumentação que, por si, está fora da esfera própria das ciências naturais.
Não obstante isto, é digno de atenção que modernos cultores destas ciências considerem a idéia da criação do universo inteiramente conciliável com a sua concepção científica, e, que, antes, a ela são eles espontâneamente conduzidos pelas suas investigações; ao passo que, ainda há poucos decênios, uma tal "hipótese" era repelida como absolutamente inconciliável com o estado presente da ciência. Ainda em 1911 o célebre físico Svante Arrhenius declarava que a "opinião de que alguma coisa possa nascer do nada está em contraste com o estado presente da ciência, segundo a qual a matéria é imutável". De igual modo, é de Plate a afirmação: "A matéria existe. Do nada não nasce nada: por conseqüência, a matéria é eterna. Não podemos admitir a criação da matéria".
Quão diverso e mais fiel espelho de imensas visões, é, ao contrário, a linguagem de um moderno cientista de primeira ordem, Sir Edmund Whittaker, acadêmico pontifício, quando fala das supra citadas investigações em torno da idade do mundo: "Estes diferentes cálculos convergem para a conclusão de ter havido uma época, cerca de 109ou 1010 anos atrás, antes da qual o cosmo, se existia, existia de forma totalmente diversa de qualquer coisa por nós conhecida: de modo que ela representa o último limite da ciência. Podemos, talvez, sem impropriedade, referir-nos a ela como à criação. Ela fornece um concordante fundo à visão do mundo que é sugerida pela evidência geológica, isto é, de que todo organismo existente na terra teve um princípio no tempo. Se este resultado devesse ser confirmado por futuras investigações, bem poderia vir a ser considerado como a mais importante descoberta da nossa época, visto representar uma mudança fundamental na concepção científica do universo, semelhante à efetuada, há quatro séculos, por obra de Copérnico".
CONCLUSÃO
Qual é, pois, a importância da ciência moderna relativamente ao argumento, em prova da existência de Deus, deduzido da mutabilidade do cosmo? Por meio de indagações exatas e particularizadas no macrocosmo e no microcosmo, ela alargou e aprofundou consideravelmente o fundamento empírico em que aquele argumento se baseia e do qual se conclui para a existência de um "Ens a se" imutável por sua natureza. Além disto, ela seguiu o curso e a direção dos desenvolvimentos cósmicos, e, assim como lhes entreviu o termo fatal, assim também apontou o início deles num tempo de cerca de 5 bilhões de anos atrás, confirmando, com a positividade própria das provas físicas, a contingência do universo e a fundada dedução de que por aquela época o cosmo tenha saído das mãos do Criador.
A criação no tempo, pois; e, por isto, um Criador; portanto Deus! É esta a voz, conquanto não explícita nem completa, que Nós pedíamos à ciência, e que a presente geração humana espera dela. É voz que irrompe da madura e serena consideração de um só aspecto do universo, vale dizer da sua mutabilidade; mas já é suficiente para que a humanidade inteira, ápice e expressão racional do macrocosmo e do microcosmo, tomando consciência do seu alto Criador se sinta coisa dele no espaço e no tempo, e, caindo de joelhos diante da sua soberana Majestade, comece a lhe invocar no nome:
"Rerum, Deus tenax vigor, - immotus in te permanens, - lucis diurnae tempera - successibus determinas".
O conhecimento de Deus como único Criador, conhecimento comum a muitos cientistas modernos, é, decerto, o extremo limite a que pode chegar a razão natural; mas - como bem sabeis - não constitui a última fronteira da verdade. Do mesmo Criador, encontrado pela ciência no seu caminho, a Filosofia, e muito mais a Revelação, em harmônica colaboração, por serem todas três instrumentos da verdade como raios do mesmo sol, contemplam a substância, desvendam os contornos, reproduzem os traços. Sobretudo a Revelação torna a presença dele quase imediata, vivificante, amorosa, qual a que o simples crente ou o cientista notam no íntimo do seu espírito, quando repetem sem vacilação as concisas palavras do antigo Símbolo dos Apóstolos: "Credo in Deum, Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae!"
Hoje, depois de tantos séculos de civilização, porque séculos de religião, não é que se faça mister descobrir pela primeira vez a Deus, quando, antes urge senti-lo como Pai, venerá-lo como Legislador, temê-lo como Juiz; para salvação dos povos urge que eles adorem o Filho, amoroso Redentor dos homens e se dobrem aos suaves impulsos do Espírito, fecundo Santificador das almas.
Esta persuasão, que da ciência tira os seus longínquos impulsos, é coroada pela fé, a qual, se sempre mais radicada na consciência dos povos, poderá deveras trazer um progresso fundamental ao curso da civilização.
É uma visão do todo, do presente, como do futuro, da matéria como do espírito, do tempo como da eternidade, que, iluminando as mentes, poupará aos homens de hoje uma longa noite de tempestade (5).
(5) - Discurso, Pont. Acad. Ciências, 22 de novembro, 1951.
Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.