Algumas das pessoas que mais falam sobre "mudança" e "progresso" são as pessoas que menos podem imaginar, realmente, qualquer alteração nos testes e métodos de vida existentes. Por exemplo, fazem do "ler e escrever" um teste para todas as idades e civilizações. Ler e escrever são, em si mesmos, meros dotes, talentos muito deleitáveis e excitantes, assim como tocar o bandolim ou dar laços. Alguns dotes, geralmente, são moda, numa determinada época, e alguns noutra. Em nossa civilização quase todos podem ler. Na civilização sarracena quase todos podiam andar a cavalo. Mas as pessoas, persistentemente, aplicam os três Rs a toda a História humana [Nota da Tradutora: A expressão "os três Rs" é utilizada para descrever os fundamentos de um programa educacional de habilidades escolares mínimas e significam: ler (reading), escrever (writing) e aritimética (aritimetics), pois, em inglês, cada uma dessas palavras possui, no início, um forte som do fonema R]. As pessoas dizem, numa espécie de vício revoltante: "Sabias que na Idade Média não era possível encontrar um em dez cavalheiros que pudesse assinar o nome?" Isso seria algo como se um cavalheiro da Idade Média bradasse, horrorizado: "Sabias que no reino de Eduardo VII, não há um em dez homens que saiba falcoaria?".Ou, de forma mais específica, seria como se um cavalheiro medieval ficasse desconcertado ao ver que o cavalheiro moderno não pode descrever, em linguagem heráldica, seu brasão. O alfabeto é um conjunto de símbolos arbitrários. As figuras da heráldica são um outro conjunto de símbolos arbitrários. No século XIV, todos os cavalheiros o conheciam, no século XX, todos os cavalheiros conhecem o alfabeto. O cavalheiro medieval era, exatamente, tão ignorante por não saber que g-a-t-o querem dizer "gato", assim como o segundo tipo de cavalheiro não sabe que a cruz de Santo André é chamada de sautor, ou que a sobreposição de "verts" em "gules" é má heráldica.
Falamos, com típica intolerância e mesquinhez, sobre "o" alfabeto, mas há, na verdade, alguns alfabetos além do alfabeto de letras. O alfabeto de letras foi insignificantemente utilizado na Idade Média, esses outros alfabetos, atualmente, são pouquíssimos utilizados. Um determinado número de soldados aprende a transmitir, entre si, um significado ao bandir, abruptamente, pequenas bandeiras. Outros falam, de modo íntimo e loquaz, pelos reflexos do sol no espelho. Esses alfabetos são habilidades, hoje, tão peculiares e restritas quanto a escrita na Idade das Trevas. Eles podem se tornar um hábito tão disseminado e universal quanto o hábito da escrita, hoje. Nalguma época futura poderemos ver uma dama e um cavalheiro, cada um num lado da mesa, conversando, animadamente, sacudindo bandeirolas. Poderemos ver distintas senhoras nas janelas dos seus aposentos, com espelhos voltados para as ruas, sacudindo-os, violentamente, para se comunicarem com as amigas a alguns quilômetros. Isso será particularmente satisfatório, pois lhes dará um uso para os espelhos, artigos que acreditam, no presente, ser completamente sem "raison d'être".
Quão estranho não é tudo isso, posto que, muitas vezes, pensamos que a educação tem relação com tais coisas como ler e escrever! Por que a verdadeira educação consiste em não ter nenhuma relação com coisas como a escrita e a leitura? Consiste, ao menos, em ser independente delas. A verdadeira educação funda-se, exatamente, na realização da simplicidade permanente que perdura em todas as civilizações, a vida que é mais do que carnal, o corpo que é mais do que vestuário. O único objeto da educação é nos fazer ignorar os meros esquemas da educação. Sem educação corremos no perigo, horrível e mortal, de levar a sério as pessoas educadas. As últimas novidades da cultura, os últimos sofismas do anarquismo irão nos entusiasmar, caso não sejamos educados: não saberemos quão antigas são todas as novas ideias. Acreditaremos que a Ciência Cristã é realmente todo o cristianismo e toda a ciência. Pensaremos que os matizes da arte são, na verdade e somente, cores artísticas. Um homem não educado sempre se importará muito com as complicações, com as novidades, as modas e o último tipo. Será um dândi intelectual. Mas o problema da educação é nos mostrar todas as variadas complicações, toda a desconcertante beleza do passado. A educação nos ordena conhecê-las todas, algo que podemos fazer sem elas.
Outro dia vi, no jornal, um espantoso exemplo de tudo o que dissemos. Parece que a duquesa de Somerset esteve visitando algum internato onde eram ensinados, às crianças, contos de fadas, e então, ao se dirigir ao corpo de tutores, noutro local, disse que os contos de fadas estavam repletos de "bobagens", e que seria muito melhor ensinar as crianças a respeito de Júlio César (100-44 a.C.) "ou outros grandes homens". Aqui vemos a completa incapacidade de distinção entre o normal e o eterno, o anormal ou acidental. Os conselhos tutelares são acidentais e anormais; deverão ser consumidos pela ira de Deus. Internatos são anormais, e espero ver, por fim, alguma forma de educação mais democrática e justa. As "duquesas" são anormais; são um produto peculiar da combinação da velha aristocracia com a nova mulher. Mas, os contos de fadas são tão normais quanto, por exemplo, leite ou pão. As civilizações mudam, mas os contos de fadas nunca mudam. Alguns detalhes podem nos parecer estranhos, mas seu espírito é o espírito do "folk-lore", numa tradução literal, a palavra alemã para senso comum. A ficção e a fantasia modernas e todo o mundo selvagem em que habita a duquesa de Somerset pode ser descrito por essa expressão. Sua filosofia significa coisas comuns do modo como são vistas pelas pessoas comuns. O conto de fadas é repleto de saúde mental. O conto de fadas pode ser mais sadio ao falar sobre um dragão de sete cabeças do que a duquesa de Somerset poderá ser a respeito de internatos.
Toda a problemática dos contos de fadas é, simplesmente, o antigo e duradouro sistema da educação humana. Um dragão de sete cabeças é, talvez, um monstro muito terrível. Mas uma criança que nunca ouviu falar dele é um monstro muito mais aterrorizante. O grifo mais maluco ou uma quimera não é uma suposição tão absurda quanto uma escola sem contos de fadas. Pelo breve relato das opiniões da duquesa de Somerset podemos ver, com facilidade, uma obscura e extraordinária opinião, a opinião de que os contos de fadas são algo fantástico, artificial, algo da mesma natureza de um gracejo, e, é claro, o exato oposto é verdadeiro. Os contos de fadas são a mais antiga, séria e universal forma de literatura. O internato é que é algo fantástico. O corpo de tutores é que é algo artificial. A duquesa de Somerset é que é uma piada. Toda a raça humana que vemos vagando em todos os lugares é uma raça mentalmente alimentada pelos contos de fadas. Isso é tão certo quanto o fato de ser uma raça fisicamente alimentada pelo leite. Caso os dragões de sete cabeças sejam abolidos, simplesmente aboliremos os bebês. Alguns girinos cabeçudos, inumanos, podem continuar vivendo, fazendo uma ridícula imitação da infância, mas, provavelmente, morrerão jovens, especialmente se forem apresentados à vida de Júlio César, caso tudo a esse respeito for contado, o que parece um tanto inapropriado para a edificação infantil, principalmente suas primeiras aventuras. Mas, se tudo a respeito de sua vida for dito, devemos nos consolar com o fato de termos em mãos algo de sua vida, ou da vida de qualquer outro homem, realmente importante. Se todos os acontecimentos de sua vida forem contados, ela começaria pela vívida descrição de quanto ele adorava os contos de fadas. Alguns desses contos de fadas foram apreciados até o fim da vida, pois Júlio César era extremamente supersticioso, assim como todos os homens de grande inteligência que não encontraram uma religião.
Aqui, então, temos um curioso exemplo de uma pessoa equivocando-se um bocado a respeito da atmosfera social para a sanidade eterna. Para começo de conversa, mesmo com relação ao mero fato físico, os contos de fadas são um retrato muito melhor da vida permanente de grande parte da humanidade do que a ficção mais realista. A mais realista das ficções lida com cidades modernas -- ou seja, com um curto período de transição numa pequena esquina do menor dos quatro continentes. Os contos de fadas lidam com a vida de campo, de cabanas e palácios, daquelas simples relações com o gado e do tipo que, na verdade, são a experiência de grande número de homens no maior número de séculos. O verdadeiro fazendeiro, na maioria dos lugares, realmente não envia seus três filhos para trazer-lhe fortuna. Ele sabe, muitíssimo bem, que eles não a trarão. O verdadeiro rei da maioria das casas reais da Terra, realmente, não está pronto a oferecer para algum destemido aventureiro a "metade de seu reino". Seu reino é tão extraordinariamente pequeno que, para começar, a divisão não parece natural. Até mesmo nessas questões físicas, o conto de fadas parece incrível porque estamos, de certo modo, numa posição excepcional. Caso nos pareça incrível, isso é porque a grande civilização que construímos é uma coisa especializada, singular e algo mórbida. Em suma, somente nos parece incrível porque nós mesmos, muito em breve, seremos não-críveis.
No mesmo jornal, ou noutro muito parecido, deparei-me com outro exemplo, exatamente, da mesma falta de educação e de senso de proporção da História. Outra distinta senhora de sociedade, de semelhante boa posição social, escreveu para o "Daily Telegraph" sugerindo que as crianças dos internatos devessem ser desestimuladas de se vestirem -- ou melhor, que seus pais fossem desencorajados de vestir-lhes -- com ornamentos extravagantes e berloques, com rendas, veludos ou laços de fita. Ela insistia que os meninos de Eton ou de Harrow vestiam-se com sobriedade, em preto, branco e cinza. Um rapaz de Eton veste-se discretamente não porque é viril, mas porque está na moda. Ela não parece estar ciente de que, há pouco mais de um século, toda a aristocracia se vestia com rendas e veludos e laços de fitas. Os pais das crianças pobres, novamente, estão fazendo aquilo que é meramente normal a todo o ser humano. Estão vestindo seus filhos como os cavalheiros de ontem se vestiam e poderão se vestir, amanhã.
G. K. Chesterton (* 1874 / + 1936)
Traduzido do inglês por Márcia Xavier de Brito
Este ensaio não coligido foi publicado pela primeira vez na edição de 18 de novembro de 1905 no "Illustrated London News", após a publicação do livro "Hereges".
Em língua portuguesa o artigo foi publicado originalmente no seguinte periódico: "The Chesterton Review (Edição Especial em Português)", Volume I, Número 1, 2009: 11-14.
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