12 de novembro de 2012

O Homem e a Graça

O leitor permita-me hoje algumas confidências. Mesmo considerando que o site Voto Católico está destinado a fornecer orientações práticas aos católicos que procuram informar-se, a fim de que possam influir bem nas eleições ou na vida política do país, ocorreu-me que seria oportuno tratar de um tema que, embora mais diretamente ligado à fé, não deixa também de ser prático.
Certa feita, aproveitando um conselho prático de São Francisco de Sales – de tirar lições espirituais dos acontecimentos cotidianos –, passeando por Tiradentes, vendo ali os sinais exteriores evidentes de uma presença pulsante do catolicismo em tempos não tão distantes, veio-me à mente a seguinte intuição: em dias passados provavelmente a maior parte da população daquela cidade vivia em estado de graça, isto é, na graça santificante, em comunhão com Deus. E, o que é muito salutar, esses homens e mulheres sabiam o que é a graça santificante.
Não me lembro se na mesma ou em outra viagem, estava eu ali lendo a esplêndida e original biografia de Santo Tomás de Aquino saída da pena de Chesterton. De súbito, a ideia que eu mantinha a respeito dos munícipes de Tiradentes e – por que não dizer? – de várias cidades brasileiras, há uns cinquenta anos atrás, transpôs-se para a Idade (preconceituosamente chamada de) Média: é bem possível que a maior parte dos homens e mulheres que viviam na Europa, durante o Medievo, se achassem em estado de graça e soubessem de que isso se tratava.
Quem compreende o que significa encontrar-se ou não em estado de graça tem consciência de que esse assunto é de extrema gravidade e de crucial importância. Aliás, eu diria até, é o único assunto relevante. Como a graça santificante é indispensável à salvação de uma alma, é também indispensável à salvação do mundo. Sem a graça santificante, que é o próprio Deus habitando na alma, o homem tende irremediavelmente à destruição, ao egoísmo, ao afastamento da verdade sobre si mesmo.
Quem já não se deu conta de que, há uns cinquenta anos – curiosamente os jornais estampam hoje, dia do Papa, dia de São Pedro, que há cinquenta anos os católicos eram 93,1% da população –, o edifício mais importante dos municípios brasileiros era a Igreja Matriz situada na praça principal? Quais acontecimentos eram os mais relevantes da vida em sociedade? Não seriam as festividades religiosas? Ora, em muitos lugares, as estações da via sacra ainda estão encravadas nas ruas e adornadas de imagens esplendorosamente esculpidas. Tudo isso é sinal de que não somente a Igreja Matriz estava no coração da cidade, mas de que Deus estava no âmago dos cidadãos. Hoje, porém, os edifícios principais das cidades são os shopping centers, e os exercícios nas academias substituíram a prática da ascese cristã. Outrora, a Igreja e os sermões eram formadores de opinião; hoje, a mídia – que está a serviço do lucro, obviamente – e as novelas é que são os nossos conselheiros.
Santa Teresa de Ávila e São Francisco de Sales, além de muitos outros, já descreveram a situação calamitosa em que se encontra um homem em pecado mortal. A alma em situação de pecado grave é incapaz de qualquer obra boa; tudo nela procede do egoísmo. Nada mais nela provém daquela fonte límpida e verdadeira que é Deus. Não há amor nem verdade numa alma em inimizade com Deus. Alguns gestos, alguns atos podem até ter a aparência de amor e de verdade, mas são meros cacoetes; não são autênticos. São como a moeda falsa posta em circulação por quem não é a autoridade competente para fazê-lo. Quantos enganos não geram esses falsos valores! Não há amor e verdade bastantes em um mundo cuja maioria esmagadora das pessoas não se encontra mais em estado de graça, aliás, o que é mais grave, nem sabe o que é isso. Sem a graça de Deus, não há limites para o mal. Sem Deus, não há limite para a queda, para o erro e para a mentira.
O alijamento de Deus da vida pública é apenas um sintoma, é consequência. Não constitui a verdadeira doença. Se as coisas que dizem respeito a Deus não ocupam mais a centralidade que possuíam na vida pública, é porque Ele não habita mais os corações. Ele foi alijado também das nossas almas. Delicado, retirou-Se antes de ser expulso. Ao notar que Sua presença constituía um estorvo, partiu. Nossas ações exteriores apenas refletem o que se passa no nosso interior. Se o mundo está doente é porque não há pessoas em estado de graça em número ou em santidade suficiente para neutralizar a ação dos que vivem sob o império do egoísmo.
Na vida espiritual, não existe neutralidade; não existe meio termo. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, escreve: dois amores fundaram, pois, duas cidades. O amor a Deus, até o desprezo de si, a cidade celeste; e o amor a si, até o desprezo de Deus, a cidade terrestre. O amor a si até o desprezo de Deus tem prevalecido nos tempos que correm.
Há dois reinos, duas cidades, misturados neste mundo. Embora estejam todos neste mundo, uns cidadãos pertencem a um reino, e outros, a outro reino. Estes dois reinos, estas duas cidades, o trigo e o joio, encontram-se em permanente oposição. Uns agem sob o influxo da graça de Deus; outros, de acordo com os sussurros do egoísmo, do amor próprio. Uns, sob a ação alegre e diligente do Espírito Santo, promovem a sacralidade de cada homem, sem distinções, advogando direitos de terceiros. Outros, escravos do orgulho, do egoísmo e do pessimismo, do prazer temporal entediante, vassalos do pai da mentira, introduzem, com falsos argumentos, políticas públicas que atendam aos seus gostos e caprichos cada vez mais sórdidos e requintados, violadores da sacralidade do homem. Com efeito, a alma morta pelo pecado grave não tem gosto pelas coisas de Deus e, cega pelo breu do egoísmo, não enxerga mais a sua dignidade nem a dignidade dos outros.
Há dois reinos, dois mundos em combate. Um oferece resistência ao outro. Como outrora Cristo travou diálogos duríssimos com os homens do seu tempo, também hoje a Igreja, que é o próprio Cristo, trava diálogos duríssimos com os homens resistentes à graça divina. Mesmo que desenvolva os melhores argumentos, as mais coerentes explicações, a parcela da humanidade resistente à graça divina a eles se oporão.
Que fazer diante disso? Como está claro, o combate não é puramente intelectual; é, antes de tudo, espiritual. Para um combate espiritual é preciso valermo-nos de armas espirituais. Assim, em primeiro lugar, para que a humanidade volte a viver em comunhão com Deus, devemos nós mesmos procurar esta comunhão, confessando-nos assiduamente e afastando-nos do pecado mortal como o único mal, a única desgraça a evitar. Decerto, não somente a confissão, mas a recepção frequente dos sacramentos. Uma alma que se eleva, eleva o mundo.
Além disso, a oração, a vida ascética, o cumprimento dos nossos deveres para com Deus. De um modo particular, além da meditação (ou oração mental) diária, a recitação do terço e, tanto quanto possível, de mais de um terço e, quem sabe, do rosário completo, servindo-nos do exemplo de São Domingos de Gusmão. O santo rosário, este meio excelente, este remédio eficaz indicado pela Virgem Santíssima, continua sendo um dos instrumentos mais potentes para amolecer os corações e torná-los dóceis à ação do Espírito Santo. Nossa Senhora do Rosário apareceu a São Domingos no século XIII. Não por mera coincidência, Nossa Senhora do Rosário apareceu a Lúcia, Jacinta e Francisco, no mês de maio, em 1917, no dia 13. O temível exército de Maria possui uma arma letal contra as hostes inimigas. Tal arma a manejam pobres, velhos, doentes, crianças e aleijados, e, quanto mais débil for o soldado, mais eficazes e certeiros serão os disparos.

Fonte:

Paul Medeiros Krause é Procurador do Banco Central em Belo Horizonte.
Belo Horizonte, 8 de julho de 2012

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